Na noite de 23 para 24 de junho, milhares de fogueiras iluminam cidades e vilas do Nordeste brasileiro, enquanto pés de milho assam, quadrilhas giram ao som de sanfona e crianças correm atrás de balões de papel. O Dia de São João — celebrado anualmente em 24 de junho — não é apenas uma data religiosa, mas um dos mais profundos rituais populares do país, com raízes que cruzam o Atlântico e remontam ao século IV. A festa, que homenageia São João Batista, o último profeta e precursor de Jesus, mistura tradição católica, ciclos agrícolas e símbolos pagãos em uma celebração única que une fé, colheita e folia.
Do Jordão ao Nordeste: a jornada de um santo
Segundo o Evangelho de Lucas, São João Batista nasceu por volta de 2 a.C. em Aim Karim, uma pequena cidade a seis quilômetros de Jerusalém. Seus pais, Zacarias, um sacerdote, e Santa Isabel, ambos idosos e considerados estéreis, receberam a visita do anjo Gabriel, que anunciou o nascimento de um filho cuja missão seria preparar o caminho para o Messias. João cresceu no deserto, pregando arrependimento e batizando pessoas nas águas do Rio Jordão. Sua morte, em 27 d.C., foi trágica: decapitado por ordem de Herodes Antipas, após a dança da filha de Herodíades, sua concubina.A Igreja Cristã indivisa, ainda unificada antes da grande divisão entre Oriente e Ocidente, instituiu a festa de seu nascimento em 24 de junho — exatamente seis meses antes do Natal, em 25 de dezembro. Essa escolha não foi aleatória. Os primeiros cristãos alinharam os nascimentos de Jesus e João Batista com os solstícios: João, cuja missão era "diminuir" enquanto Jesus "crescia", nasceu no dia mais longo do ano, quando os dias começam a encurtar. A simbologia era perfeita: enquanto o sol declina, João se apaga para dar lugar à luz divina.
As fogueiras que vieram de Portugal
A prática de acender fogueiras na noite de São João tem origem numa lenda medieval contada pela pesquisadora Lúcia Rangel: diz-se que Santa Isabel, ao saber que daria à luz João Batista, acendeu uma grande fogueira no alto de uma colina para avisar Maria, sua prima, que o filho estava nascendo. Maria, ao ver as chamas, correu até ela. Essa cena, transformada em símbolo de comunicação entre o divino e o humano, foi levada pelos portugueses ao Brasil no século XVI.Na Península Ibérica, a festa já era marcada por rituais de fogo, danças e oferendas à natureza — heranças de celebrações pagãs do solstício de verão. A Igreja, em vez de proibir, absorveu os costumes, santificando-os. Em Portugal, a festa era chamada de "Festa Joanina". Quando os colonizadores chegaram ao Nordeste, encontraram o período de junho como o momento da colheita do milho, do sorgo e da mandioca. A coincidência foi perfeita: a alegria da colheita se fundiu à devoção ao santo. Assim nasceram as Festas Juninas brasileiras.
Do santo ao povo: Santo Antônio, São João e São Pedro
A tradição não se limita a um único santo. O mês de junho é um tríptico sagrado: Santo Antônio em 13 de junho, o "santo casamenteiro"; São João em 24; e São Pedro em 29, padroeiro dos pescadores. Cada um tem seu ritual. Em São João, as fogueiras são mais altas, os pés de milho mais numerosos. Em São Pedro, as comidas de mar e os barcos de papel flutuam nos rios. E em Santo Antônio, as noivas solteiras colocam um rosário debaixo do travesseiro — e esperam.Na cidade de Campina Grande, na Paraíba, a festa atrai mais de 2 milhões de pessoas por ano — a maior do mundo. Em João Pessoa, as quadrilhas disputam prêmios de R$ 500 mil. Em São Paulo, até os bairros mais urbanos têm fogueiras em praças. A festa não é mais só nordestina — é brasileira. Mas ainda é no sertão que ela respira mais fundo.
Por que isso importa hoje?
Nas cidades modernas, onde o calendário é marcado por lançamentos de apps e notificações de celular, as Festas Juninas são um respiro. Um momento em que famílias se reúnem, crianças aprendem cantigas de roda que seus avós cantavam, e o pão de queijo, o pé de moleque e o quentão voltam a ser mais do que comida — são memória. Elas resistem à homogeneização cultural porque são feitas de gestos, não de marketing.Um estudo da Universidade Federal de Pernambuco mostrou que 87% dos participantes das festas juninas no interior do Nordeste afirmam que a celebração é a principal forma de manter viva a cultura local. E 62% dizem que, sem essas festas, perderiam contato com as histórias de seus ancestrais. Não é só folia. É sobrevivência cultural.
O que vem depois?
Nos últimos anos, prefeituras têm investido em festas mais sustentáveis: fogueiras de madeira certificada, embalagens biodegradáveis, e até fogueiras elétricas em áreas urbanas. Mas os mais tradicionais resistem. "Se a fogueira não queima, não é São João", diz Dona Lúcia, 78 anos, que acende a fogueira da família em Caruaru há 60 anos. "O fogo é o que limpa, o que aquece, o que chama. Sem ele, o santo não vem."Em 2025, a UNESCO está avaliando o pedido do Brasil para incluir as Festas Juninas na lista do Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade. Se aprovado, será a primeira festa popular brasileira com esse reconhecimento — e o maior reconhecimento possível para uma tradição que nunca pediu para ser famosa. Só queria ser lembrada.
Frequently Asked Questions
Por que São João é comemorado em 24 de junho e não em outra data?
A data foi escolhida pela Igreja Cristã no século IV para coincidir com o solstício de verão no hemisfério norte — o dia mais longo do ano. Como o nascimento de Jesus é celebrado em 25 de dezembro, seis meses antes, o nascimento de João Batista, seu precursor, foi fixado em 24 de junho. Isso reflete a frase bíblica "Ele deve crescer, e eu diminuir", já que após o solstício, os dias começam a encurtar.
Como a festa chegou ao Brasil e por que se tornou tão forte no Nordeste?
Os portugueses trouxeram a tradição da Península Ibérica durante a colonização, e no Nordeste, onde a agricultura era o centro da vida, a celebração se fundiu à colheita do milho em junho. A combinação de devoção católica com rituais agrários criou uma identidade única. O clima seco e as comunidades rurais fortaleceram a tradição, que se espalhou, mas nunca perdeu seu núcleo mais autêntico na região.
Qual é o significado da fogueira na festa de São João?
A fogueira simboliza a luz que anunciou o nascimento de João Batista, segundo a lenda de Santa Isabel. Mas também representa purificação, calor e proteção contra o mal — ideias herdadas das celebrações pagãs do solstício. Hoje, é o coração da festa: onde há fogueira, há comunhão. A chama não é só visual — é sensorial. O cheiro da lenha queimada, o calor no rosto, o som das risadas ao redor: tudo isso torna o ritual inesquecível.
As Festas Juninas são apenas religiosas ou têm outro significado?
São ambas. Embora tenham raízes católicas, as festas incorporam elementos agrários, populares e até pagãos. Agradecem à natureza, celebram a colheita, reforçam laços familiares e comunitários. Em muitos lugares, a parte religiosa é secundária: o que importa é o povo reunido, a música, a comida e a alegria. É uma festa que não precisa de padre para existir — só de coração.
Por que Santo Antônio e São Pedro também são celebrados em junho?
A proximidade das datas (13, 24 e 29 de junho) foi aproveitada pela Igreja para criar um ciclo de celebrações que prolongava o período de festa. Cada santo tem um papel: Antônio como protetor dos casamentos, João como o anúncio da luz, e Pedro como guardião das portas do céu. Juntos, formam um triunvirato popular que abrange os principais desejos humanos: amor, proteção e salvação.
As Festas Juninas vão continuar sendo celebradas no futuro?
Sim — e já estão se adaptando. Jovens estão reinventando as quadrilhas com música eletrônica, chefs criam versões gourmet do pé de moleque, e escolas ensinam as danças como parte do currículo. A tradição não está morrendo: está se transformando. O que permanece é o sentimento de pertencimento. Enquanto houver alguém acendendo uma fogueira, cantando "o bêbado e a equilibrista", a festa viverá.
Geovana M.
outubro 30, 2025
Essa história da fogueira ser ligada a Santa Isabel é linda, mas na prática, quem acende a fogueira no sertão é o tio que bebeu quentão demais e esqueceu que tinha um isqueiro na mão. O fogo é o que une, mas o álcool é o que faz a gente dançar errado e rir até chorar.
Carlos Gomes
outubro 30, 2025
Na verdade, a data de 24 de junho foi estabelecida pelo Concílio de Nicéia em 325 d.C., alinhada ao solstício de verão no hemisfério norte. A Igreja fez isso intencionalmente para cristianizar festas pagãs, como as de Midsummer. O mesmo aconteceu com o Natal em 25 de dezembro. É uma estratégia de conversão, não coincidência.