Câmara aprova proibição de voto para presos provisórios, mas TREs seguem preparando eleições para 2026
Raniere Macias 21 nov 0

A Câmara dos Deputados aprovou na terça-feira, 18 de novembro de 2024, uma emenda que retira o direito de voto de pessoas presas sem condenação definitiva — um movimento que colide diretamente com a Constituição Federal de 1988. A proposta, apresentada pelo deputado Marcel van Hattem (Novo-RS), recebeu 349 votos a favor, 40 contrários e uma abstenção. A mudança, que agora segue para o Senado Federal, pretende alterar o Código Eleitoral para cancelar automaticamente o título eleitoral de quem estiver em prisão provisória. Mas aqui está o paradoxo: enquanto o Legislativo tenta tirar esse direito, o Poder Judiciário Eleitoral continua preparando as urnas para eles.

Um direito garantido pela Constituição — e defendido pelos tribunais

Desde 1988, a Constituição brasileira garante que os direitos políticos só são suspensos após condenação criminal transitada em julgado. Isso significa que, mesmo preso, se você ainda não foi condenado definitivamente, continua sendo cidadão pleno — com direito a votar, ser votado e participar da vida democrática. Essa regra, baseada no princípio da presunção de inocência, é defendida por juristas, defensores de direitos humanos e pelos próprios tribunais eleitorais.

No Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo (TRE-SP), por exemplo, 1.151 presos provisórios e adolescentes internados votaram no segundo turno das eleições municipais de 2024. Foram instaladas 26 seções especiais em sete cidades: Diadema, Franca, Guarulhos, Ribeirão Preto, São Bernardo do Campo, São Paulo e Taubaté. Segundo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), cerca de 6.000 presos provisórios estavam aptos a votar em todo o país — São Paulo liderava com 2.562, seguido pelo Espírito Santo (857), Bahia (612) e Rio Grande do Sul (591).

Projeto 'Democracia Além das Grades' avança no Rio de Janeiro

Enquanto isso, no Rio de Janeiro, o desembargador Claudio de Mello Tavares, vice-presidente e corregedor do Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro (TRE-RJ), deu início, em 5 de novembro de 2025, ao projeto "Democracia Além das Grades". A iniciativa visa garantir o voto de presos provisórios e jovens sob medidas socioeducativas nas eleições gerais de 2026. As unidades selecionadas serão escolhidas com base em critérios rigorosos: segurança para mesários, número de eleitores interessados e infraestrutura adequada. Unidades ligadas a facções criminosas serão excluídas — não por preconceito, mas por risco operacional.

"O projeto visa garantir o princípio constitucional da universalização do voto", explicou Tavares em nota oficial. "Essas pessoas não foram condenadas. Elas ainda têm direitos. Negar o voto é negar a cidadania antes da justiça atuar."

Justificativa política: custo e segurança, ou preconceito institucional?

A emenda aprovada na Câmara tem como justificativa principal a redução de custos e riscos logísticos. O relator, deputado Guilherme Derrite (PP-SP), argumentou que a logística de montar seções em presídios consome recursos públicos e expõe mesários e servidores a riscos. Mas especialistas veem nisso algo mais profundo: uma tentativa de esconder o rosto da desigualdade.

"É fácil dizer que é caro votar na prisão. Mas é mais caro ainda ignorar que 6 mil pessoas — muitas delas pobres, negras, sem acesso a advogados — estão sendo silenciadas antes mesmo de serem julgadas", disse a professora de direito constitucional Beatriz Silva, da USP, em entrevista ao CBLA.

Os números, por si só, mostram que o impacto eleitoral é quase nulo. Em 2022, dos 12.903 presos provisórios aptos a votar, apenas 11.363 compareceram — menos de 0,02% do total de votos válidos no segundo turno da presidencial. Em 2024, os 6.000 votos representam 0,007% do eleitorado nacional, que supera 150 milhões. Mas o simbolismo? É gigantesco.

Conflito entre poderes: legislativo contra judiciário

Conflito entre poderes: legislativo contra judiciário

Agora, o Brasil vive uma tensão institucional rara: o Congresso quer mudar a regra, mas os tribunais eleitorais — que têm autonomia constitucional — continuam aplicando a lei vigente. O TSE regulamentou o processo em 2024 com a Resolução 23.736/2024, determinando que os TREs devem assegurar seções eleitorais em unidades prisionais e de internação. Se a emenda for aprovada no Senado, o conflito será judicializado. E não será só uma questão de logística — será uma batalha sobre o que significa ser cidadão no Brasil.

"A Constituição não é um manual de custos. É um pacto de dignidade", afirmou o advogado Roberto Mendes, membro da OAB-SP. "Se você pode ser preso sem julgamento, não pode ser privado do voto. Isso não é política. É direito."

Como funciona a votação em prisões?

Os presos provisórios não votam nas cadeias como se fossem escolas. A logística é complexa: os TREs montam seções eleitorais dentro dos presídios, com urnas eletrônicas, mesários treinados e segurança reforçada. Os eleitores são identificados por biometria e votam em cabines isoladas, como qualquer cidadão. O processo é monitorado pelo Ministério Público e pela Defensoria Pública, garantindo transparência.

Os adolescentes internados — que cometeram atos infracionais antes dos 18 anos — têm o mesmo direito, conforme o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). A única diferença é que eles não são "presos" no sentido penal, mas estão sob medida socioeducativa. Ainda assim, seu voto é protegido pela Constituição.

O que vem a seguir?

O que vem a seguir?

A emenda ainda precisa ser aprovada pelo Senado. Se passar, será submetida à sanção presidencial — mas provavelmente será questionada no Supremo Tribunal Federal (STF). O próprio TSE já indicou que não deixará de cumprir a Constituição. Isso pode levar a uma crise institucional sem precedentes: o Legislativo cria uma lei, e o Judiciário a ignora por ser inconstitucional.

Enquanto isso, os TREs continuam trabalhando. Em fevereiro de 2024, o TRE-RS reuniu 13 instituições — incluindo a SUSEPE e a FASE — para planejar a votação em 2024. Em 2026, o projeto do Rio de Janeiro será expandido. E o Brasil terá que escolher: quer ser um país onde o voto é um privilégio para os livres, ou um direito para todos — mesmo para quem está atrás das grades, mas ainda não foi condenado?

Frequently Asked Questions

Por que presos provisórios têm direito a votar se estão presos?

Porque a Constituição Federal de 1988 estabelece que a suspensão de direitos políticos só ocorre após condenação criminal transitada em julgado. A prisão provisória é uma medida cautelar, não uma punição. Quem está preso sem sentença ainda é considerado inocente — e, portanto, mantém todos os direitos civis, incluindo o voto. Negar esse direito seria violar o princípio da presunção de inocência.

Quantos votos de presos provisórios realmente mudariam uma eleição?

Nenhum. Em 2024, cerca de 6.000 presos provisórios votaram — menos de 0,007% do eleitorado nacional, que tem mais de 150 milhões de pessoas. Em 2022, os 11.363 votos desse grupo representaram menos de 0,02% dos votos válidos no segundo turno da presidencial, onde Lula venceu Bolsonaro por quase 2 milhões de votos. O impacto é estatisticamente irrelevante, mas o simbolismo é enorme.

O que acontece se o Senado aprovar a emenda?

Se aprovada, a emenda entrará em conflito direto com a Constituição e com as resoluções do TSE. Os tribunais eleitorais provavelmente não cumprirão a nova lei, e o assunto irá parar no Supremo Tribunal Federal. O STF já decidiu em outras ocasiões que direitos fundamentais não podem ser retirados por leis ordinárias — e o voto é um deles. A crise institucional seria iminente.

Por que o TRE-RJ está preparando a votação para 2026 se a Câmara já aprovou a proibição?

Porque o TRE-RJ segue a Constituição, não a Câmara. A emenda ainda não virou lei — só foi aprovada na Câmara e precisa ser votada no Senado e sancionada pelo presidente. Enquanto isso, a legislação vigente continua valendo. O TRE-RJ, como órgão do Judiciário, tem obrigação legal de garantir o exercício do voto conforme o que está na Carta Magna, independentemente de decisões políticas no Legislativo.

Quem são os presos provisórios que votam?

São pessoas presas por suspeita de crime, mas que ainda não foram julgadas ou condenadas definitivamente. Muitos são pobres, negros, sem condições de pagar fiança ou contratar bons advogados. Eles não são condenados por crimes graves — a maioria está presa por tráfico, furto ou porte de arma. O voto é a única forma que têm de ser ouvidos na democracia, mesmo quando o sistema os esquece.

A emenda afeta adolescentes internados?

Sim, e isso é um ponto crítico. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) garante que jovens internados por infração mantêm seus direitos políticos, pois não são considerados criminosos, mas sujeitos em processo de reinserção. A emenda proposta pela Câmara não faz distinção entre adultos e adolescentes — o que significa que, se aprovada, poderia privar adolescentes de votar, mesmo sem condenação. Isso viola tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil.